Este artigo é comprido e merece ser lido com cuidado. Ele é útil para aqueles que terminaram de contar uma história e sabem que estão próximos das grandes modificações que todos os textos requerem.
Por experiência própria e por ter feito "n" revisões em textos alheios, sei que isso é diferente do que imagina. Escritores acham que colocar palavras no papel em sequência lógica representa escrever um livro.
Além disso, podem imaginar que o trabalho de deixar o texto "redondo" é apenas do editor e do revisor...
Não, não e não!
Sua nova vida, de ESCRITOR, começa agora...
Por favor, imprima o artigo, pegue um copo de suco — ou uma taça de vinho... — e dedique-se a fazer a leitura completa deste texto antes de aplicá-lo ao seu original.
Tomamos por princípio que a revisão de texto é uma das tarefas do escritor, uma vez que pretende que seus leitores compreendam a história de forma integral.
Assim, falamos das camadas superficiais* e não entenda superficial, como menos importante. São apenas externas e nítidas logo de cara, na primeira leitura. (*ortografia, gramática, sintaxe, morfologia, etc.)
Falando em primeira leitura, você já se deu conta que, com raras exceções não lemos mais do que uma vez um conto, ou romance?
Isso quer dizer que: quem terá que ler e corrigir o texto é você e não o seu leitor. O texto, quando chega a ele, deve estar pronto e sem deslizes.
E quando isso acontece, exatamente?
Não há resposta. Faça o seu melhor, garanta a excelência. Essa é uma meta grande e gera um desafio considerável. Mas é possível, porque não estamos falando comparativamente: o seu texto não precisa ser melhor do que o de Tal Autor. Precisa ser o seu melhor texto naquele momento ou, o melhor que podia fazer em relação aquele texto.
A revisão “profunda” vai até a essência do texto. Vamos agora adequar os aspectos relacionados a esses itens:
- Personagem
- Enredo
- Tempo
- Espaço
- Narrador
- Seu objetivo ao contar a história
Para que você possa fazer a revisão da essência, preparamos um questionário que deve ser respondido num dia sem muito calor... Faça primeiro as revisões superficiais, dê um tempo e com a cabeça fria, sem muita preocupação, concentre-se em avaliar se prestou atenção aos aspectos que elencamos a seguir.
Incluímos uma sugestão de exercício ao final de cada bloco. Não há necessidade de fazer o exercício a cada texto que escrever! Mas tenha em mente que mudanças são sempre possíveis, trata-se apenas de ter em mente o tópico.
Com o tempo e a prática em revisar “profundamente” você achará mais perguntas.
E mais respostas, o que é melhor!
Personagens
- As personagens que apresentou no texto estão devidamente caracterizadas?
- Você deixou todas as caracterizações para o mesmo momento, ou seja, quando apresenta uma delas, trata de “despejar” de uma vez as características ou faz isso ao longo do texto?
- O leitor tem pistas para reconhecê-las mesmo que o nome delas não seja citado?
- Você deu muita ênfase a uma personagem em detrimento de outra? Há alguma desigualdade desnecessária?
- Você deixou espaço para que o leitor criasse mentalmente a imagem das personagens?
- Existe alguma personagem desnecessária na história?
- As referências (em diálogos, citações) às personagens que não têm ação na história estão claras?
- Há alguma contradição na caracterização das personagens em termos de época ou espaço geográfico?
- Cada uma delas, se houver algum diálogo do qual participam, tem uma voz própria e um jeito de falar pessoal?
Exercício final de revisão profunda – personagens
Crie o perfil de Facebook das personagens principais. Pode usar qualquer outro tipo de modelo para fazer o perfil, mas o objetivo é que elas mesmas se apresentem, ao invés do narrador. Reveja se as características que selecionaram aparecem no seu texto.
Enredo
- Sua história tem, pelo menos, começo, meio e fim?
- As ações acontecem de forma lenta, normal ou rápida? Em todos os trechos, ou em apenas algumas partes?
- Você “amarrou” um parágrafo no outro, de forma a criar expectativa no decorrer da leitura?
- Você inclui entre o início e o meio e entre o meio e o fim, pelo menos um fato surpreendente/curioso? (ponto de virada)
- Os conflitos foram solucionados?
- Alguma informação ficou sem função?
- Alguma informação ficou faltando?
Exercício final de revisão profunda – enredo
Tenha em mente que você não é livre para determinar o número de palavras que quer escrever. Caso tivesse, obrigatoriamente que reduzir o seu texto em 25%, o que cortaria?
Corte, segundo a reflexão acima.
Releia o texto e verifique o que mais é desnecessário. Menos e bem feito é mais.
Tempo
- Quanto tempo (cronológico) dura o seu texto?
- As ações de seus personagens cabem nesse tempo?
- Um tempo menor requer ações mais rápidas. As frases e a pontuação acompanham a velocidade que quer imprimir?
- Um tempo maior requer mais detalhes. As frase e pontuação passam essa impressão ao leitor?
- Em que época as ações se passam?
- Os objetos, figurino, veículos, costumes, acessórios, mobiliário e falas das personagens estão de acordo com a época?
Exercício final de revisão profunda – tempo
Se ainda não o fez, construa uma linha de tempo, do início ao final do texto. Situe as principais ações usando também, o recurso do relógio/calendário.
Espaço
- Qual é o espaço geográfico da sua história? (país, cidade, bairro...)
- Quais são os ambientes da história? (casa, escola, quarto, cozinha...)
- Quando existem trocas de ambiente, isso é perceptível?
- Do ponto de vista de quem, os cenários são caracterizados? Isso está adequado? (Exemplos práticos: uma criança não enxerga além da altura dos seus olhos. Se ela estiver descrevendo um ambiente, terá que fazê-lo desse ponto de vista; de dentro de um carro, nossa acuidade visual é menor por cauda dos vidros se forem escuros ou da velocidade, assim por diante)
- Você deu margem ao leitor para que ele preenchesse os ambientes e pudesse imaginá-los?
- Suas referências aos ambientes incluem outros sentidos que não a visão, tais como audição, sensações físicas (calor, frio) olfato?
- Os personagens respeitam as características geográficas?
- Há alguma coisa em sua história que precisa, obrigatoriamente, estar clara para que o leitor sinta-se mais próximo do espaço que você propôs? (você está contando sobre uma viagem a uma geleira, mas não diz isso e de repente, todas as personagens estão tremendo de frio e ficando com os dedos dormentes... percebeu?)
Exercício final de revisão profunda – espaço
Você conhece bem o seu texto. Imagine ou peça para que alguém faça a leitura para você. Se quiser, grave. Feche os olhos e veja como num filme. Seus olhos são a câmera. Passeie pelo ambiente e reescreva, posteriormente, os trechos problemáticos.
Narrador
- Quem está narrando a história?
- Isso está claro para o leitor? Em que momento?
- A referência aos personagens, por parte do narrador, respeita os tempos/modos verbais e os pronomes?
- Quando você lê a história, em sua mente, ouve uma voz feminina ou masculina? Infantil, adulta ou envelhecida? Rouca ou límpida?
- Conforme a resposta anterior, as expressões usadas nos trechos de narração estão de acordo com “a voz”?
- O narrador está pendendo para algum personagem, ou seja, parece que ele dá mais atenção a um do que a outro?
- O narrador é imparcial ou tendencioso?
- Existe algum tipo de preconceito* implícito na narração? **
- O narrador se expressa em relação às personagens com adjetivos? (mesmo caso anterior**) Verifique a imparcialidade.
- Se o seu narrador participa das ações, você lembrou-se de caracterizá-lo?
** nenhum narrador em terceira pessoa, por definição, pode ser parcial. As opiniões* são sempre das personagens e nunca de quem conta a história, nesse caso. Cuidado com isso!
Exercício final de revisão profunda – narrador
Retire o narrador de sua história. Conte tudo através de diálogos. Como ficou?
Seu objetivo, ao contar a história
- O que pretendia contar inicialmente realizou-se?
- Você se emocionou, assustou, intrigou, alegrou, entristeceu ao ler o texto?
- Que emoções pretendia passar ao leitor?
- Consegui realizar o seu objetivo?
- Se contasse essa mesma história, sem o auxílio do texto, ou seja, oralmente, omitiria ou acrescentaria alguma coisa? Manteria a mesma ordem dos fatos?
Exercício final de revisão profunda – objetivos
Responda sinceramente: você colocaria sua história numa cápsula indestrutível para que pudesse ser lida por alguém em 3008?
Respondeu?
Ótimo!
Agora, por favor, termine!
Nada mais de revisão. Não volte a refletir sobre os mesmos tópicos. Chega de trocas, substituições, acréscimos e consultas. Está feito. Fale “amém”, “assim seja”, “that´s all folks” ou qualquer outra coisa que lhe dê a certeza absoluta de ter acabado. Passe o texto adiante. Entregue-o para o revisor, editor, publique ou guarde no seu baú, mas tire esse texto de sua frente!!!
Não há nada mais triste do que ver um texto exposto a um processo interminável de revisão.
Apesar de ser necessária, a revisão quando feita sem objetivos concretos e por puro preciosismo, pode modificar completamente a idéia inicial. Não é isso que queremos: queremos apenas, melhorar o que pode ser melhorado e temos como objetivo maior a compreensão por parte do leitor.
Revisar é diferente de planejar. Tem muito escritor que acha que está revisando e na verdade, está tentando achar uma linha para a história, o fato seguinte, a solução para um conflito. São coisas diferentes. O planejamento faz com que você escreva e a revisão faz com você publique, ou seja, esteja pronto para mostrar o seu texto aos outros (publicar = tornar público)!
Se você está escrevendo um romance ou qualquer outro texto em capítulos, é preferível que faça as duas revisões anteriormente propostas - primeira etapa (ortográfica e gramatical) e a segunda (coesão e coerência) - e deixe a revisão profunda para o final do texto, depois de acabar todos os capítulos. Dessa forma, você não modifica o plano inicial, a sua idéia central e corrige apenas o que não está dentro da meta.
Para encerrar, precisamos dizer que apesar de sua revisão, ainda existem modificações possíveis. Talvez elas não tenham ficado claras para você, nem com o auxílio do questionário. Submeter o texto à leitura de um terceiro pode ser fundamental. Aqui entram os revisores profissionais, editores e os leitores críticos. A função deles é ajustar mais ainda.
Revisores estarão concentrados na primeira e segunda etapa, com maestria. Dominam a linguagem; levantarão questões nas quais nem paramos para pensar. Podem até chegar no nível da revisão profunda, mas dificilmente o fazem – não por não terem ferramentas, mas porque normalmente estão ocupados com idioma, em si.
Um bom editor é como um afinador de pianos e percebe, porque treinou para isso, onde as notas não estão no tom.
Já os leitores críticos lhe dirão se “gostaram ou não”, o que, definitivamente, não importa. O que eles precisam lhe dizer é se “entenderam ou não”.
Não precisa contratar um leitor crítico se não puder. Entregue seu texto a alguém confiável e honesto. Preste atenção: estamos falando de crítica e não de palpite. Evite fóruns de internet a menos que você confie cegamente em quem está opinando e não esteja preocupado se, eventualmente, seu texto “vazar” antes de ser publicado.
E com a certeza de ter escrito com as entranhas e de ter revisado com o cerebelo, durma tranqüilo.
Você cumpriu sua função de escritor e pode partir para outra aventura.
Saúde!
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